O desacordo ortográfico da língua portuguesa
José Maurício Guimarães
No dia 1º de janeiro de 2009
escrevi um texto que deu início a uma série de postagens no meu blog Ekislibris
- www.zmauricio.blogspot.com –
e no envio de e-mails aos meus pacientes leitores. Eu estava com medo de
escrever. Anunciava-se, a partir de então, o início do novo Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa. Entrei em pânico, apesar dos anunciados quatro
anos para nos adaptarmos às metamorfoses empurradas goela abaixo: o prazo terminaria
agora, em 2013. Para Portugal, o prazo fixado foi maior, pois eles não
aceitariam (como acabaram não aceitando) essas broncas invenções desajeitadas e
toscas que só beneficiam a preguiça e a incompetência.
A abolição do trema só foi
providencial para os delinquentes que já não tremem nem temem; a mudança no
ditongo aberto fez que assembleia não tivesse mais o acento, só assentos (nada
foi dito se esses assentos continuariam a ser ocupados por parlamentares; um
golpe a mais e todos os acentos haveriam de cair, se é que vocês me entendem).
Mas houve benefícios extensivos ao povo em geral: ninguém mais sentiu enjôo e
sim enjoo, um bom começo para quem viaja de navio ou assiste às novelas e
programas de domingo na tv. Para internacionalizar cada vez mais o idioma
dominante (o inglês) foram incluídas, definitivamente, as letras k, w e y. Os
teclados de alguns aparelhos já não contemplam o acento grave (isso é grave),
nem o circunflexo, nem o til. A cedilha já teria morrido há muito tempo se
bondosos nerds não tivessem preservado o sutil rabinho da letra ‘c’ com que se escreve
inguinorança.
Mas como era de se prever, um
decreto presidencial publicado às pressas no dia 28 de dezembro 2012, adiou a
obrigatoriedade de uso do Acordo para 1º de janeiro de 2016. Vai mudar muito pouco a realidade
brasileira, afirmou com cândida obviedade o professor e membro da Academia
Brasileira de Letras, Domício Proença Filho noutras palavras: se vocês pensavam
que o acordo ortográfico resolveria os graves problemas nacionais (saúde,
educação, cultura, PIB, royalty do petróleo-é-nosso, mensalões, operação
porto-seguro, drogas, violência) estiveram muito enganados. O que vai acontecer, explicou
Proença Filho, é que as regras vigentes vão continuar convivendo com as
novas regras. Seria trágico
se não fosse cômico! Prevalecerá, isto sim, a pachorra brasileira: seguiremos
em convívio (ou conluio) com o besteirol, tudo como dantes no quartel de
Abrantes, com as coisas mal resolvidas criadas pelo sistema (entendam quartel de Abrantes no sentido
napoleônico e figurado). Quanto a isso, o noticiário nos informa que o
adiamento da vigência do acordo ortográfico teve apoio de muitos políticos,
pois alguns deles ainda estão sendo alfabetizados.
Quatro anos depois de minha
profecia, os doutos acadêmicos constataram que a mídia brasileira, com
pouquíssimas exceções, adotou as novas regras. Como vocês podem ver, em matéria
de profecia eu sou melhor do que os maias. Quanto à ortografia, continuo o
mesmo: errando e acertando, apesar das muitas gramáticas e compêndios que
comprei na vã tentativa de entender esse acordo ou (patuscada) de Babel.
Angola, Brasil, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe que assinaram o acordo
em 1990 e já começavam a escrever português errado, entraram em pânico. O
Timor-Leste, que ainda não era uma nação independente, só aderiu ao acordo em
2004, mas também entraram em pânico.
Que geringonça: em Portugal, a
reforma foi ratificada e promulgada em 2008 e as novas regras entraram em vigor
em maio de 2009, mas com a previsão de se tornarem obrigatórias após seis anos,
ou seja, em 2015. Moçambique diz que não aceitará pressão sobre prazo para
adotar acordo e, juntamente com Angola, não ratificou o documento. Já se fala
numa guerra de línguas no continente africano: os que usam trema atirarão
hifens e circunflexos sobre seus inimigos de fronteira. A ONU pensa em intervir
substituindo o português pelo esperanto. Os pessimistas afirmam que no futuro
só haverá duas línguas: os pobres falarão espanhol e os ricos, o inglês. Mas os
otimistas (alquimistas e magos) afirmam que só haverão duas línguas, o português e o portoseguro.
Enquanto isso, as editoras
aproveitam para desovar nas liquidações os estoques antigos (com trema) e
lançar novas edições (sem trema) muito mais caras.
É o preço que estamos pagando
antes da Copa (facilis aditus); os juros serão cobrados em 2015 (difficilis
exitus)*. Até lá, sigam meu conselho: escrevam como bem entenderem.
..........................
(*) facilis aditus, difficilis exitus: expressão latina referente ao
labirinto - fácil de entrar, difícil de sair.
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