Notícias STF
Quarta-feira, 19 de dezembro de
2012
Íntegra do voto do ministro
Gilmar Mendes sobre poder de investigação do Ministério Público
Leia a íntegra do voto do Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal,
referente ao Habeas Corpus (HC) 84548, no qual a Corte analisa o poder de investigação do Ministério Público.
O habeas foi impetrado pela defesa do empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, acusado de ser o
mandante do assassinato do
ex-prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel, ocorrido em janeiro de
2002.
Leia a íntegra do voto.
HABEAS CORPUS 84.548 SÃO PAULO
RELATOR :MIN. MARCO AURÉLIO
PACTE.(S) :SÉRGIO GOMES DA SILVA
IMPTE.(S) :ROBERTO PODVAL E
OUTRO(A/S)
COATOR(A/S)(ES) :SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
V O T O
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES:
Cuida-se
de habeas corpus em que se discute, em síntese: a) inexistência de base legal
para a decretação da prisão preventiva; b) insubsistência da ação penal embasada
por investigação promovida pelo Ministério Público.
Poder de investigação do Ministério
Público. A questão ora submetida a julgamento – poder de investigação
do Ministério Público - não é nova, é
polêmica, apresenta posições bem delineadas e em sentidos
diametralmente opostos.
Uma
primeira corrente, contrariamente à possibilidade de o Ministério Público
promover procedimentos administrativos investigatórios, aduz, em síntese, que:
a)
a atividade investigatória,
consoante o artigo 144, § 1º, IV, e §
4º, da Constituição Federal, é exclusiva da polícia judiciária.
b)
a investigação procedida pelo Parquet viola
o sistema acusatório, porquanto promove
um desequilíbrio entre acusação e defesa.
c)
o Parquet tem o poder de requisitar
diligências ou a instauração de inquéritos policiais, mas jamais de
presidi-los, nos termos do art. 129,
III, da CF.
d)
a inexistência de previsão legal de instrumento hábil a permitir e demarcar os limites das investigações.
Desse
grupo, destaco o seguinte excerto da obra Ministério Público e Investigação
Criminal, de Rogério Lauria Tucci:
É
de ser anotada, a tal propósito, desde logo, a asserção de que o poder
investigatório seria concedido, ao Ministério Público, pela própria Constituição Federal, nos incs. I, VI,
VIII e IX do art. 129; e, portanto, seria um contra-senso negá-lo ao titular
da ação penal, encarregado de formar a opinio delicti e promover em juízo a
defesa do ius puniendi do Estado.
Acresce,
nesse particular, ao que já foi explanado, em sentido oposto, que, sobre
inexistir, na realidade, essa pretendida concessão, o fato de ser o Ministério Público titular da ação,
na defesa do interesse punitivo
estatal, mostra-se, ele próprio, inibidor da sua atuação
investigatória, posto que, como logo acima ressaltado, manifestamente interessado na colheita de prova desfavorável ao
investigado, e, reflexivamente, desinteressado da que lhe possa
beneficiar.
Dúvida
alguma pode haver acerca dessa realidade, de sorte a restar ilusório o alvitre de uma investigação
escorreita, pelo órgão ministerial, assim orientado, por amor à obra
então realizada, a um desfecho exitoso do procedimento inquisitorial a seu
cargo.
Ademais,
o fato de ser possível a verificação da prática de infração penal, em autos de
inquérito civil, a cargo do Ministério Público, não obsta a que, com os
elementos eventualmente colhidos, se proceda, em sequência, à apuração regular
da materialidade do fato e respectiva autoria: até mesmo o órgão jurisdicional,
por força do disposto no art. 40 do CPP,
ao invés de proceder, diretamente, a investigação, deve remeter os respectivos
autos ou papéis ao Ministério Público, para que este, se for o caso, requisite
a instauração de inquérito policial.
De
outra banda, e como, igualmente, salientado, as outras espécies de
investigação, que não a policial, em voga, ostentam respaldo constitucional inquestionável,
determinante da atribuição deferida a outras autoridades, tanto
administrativas, como dos Poderes Judiciário e Legislativo.
E
nem se venha dizer, por fim, que a negação desse tão almejado poder ministerial
importaria em sobrelevação das atribuições conferidas à Polícia Judiciária,
cuja atuação estaria comprometida em variadas circunstâncias, e. g. em relação
à apuração de infrações penais
cometidas por agentes policiais.
Tendo-se,
necessariamente, presente que as autoridades policiais, assim como os membros
do Ministério Público, atuam, normalmente, com zelo e diligência, bem é de ver
que a repartição das atribuições estabelecidas para os agentes da persecução
penal, presta-se à determinação dos lindes das respectivas atuações, ambas
igualmente importantes e necessariamente conjugadas, em prol do resultado
visado pelo legislador constituinte, ao diversificá-las. (Rogério Lauria Tucci,
Ministério Público e Investigação Criminal, RT, São Paulo, 2004, p. 85-86).
Em
sentido contrário, negando as premissas anteriores, o entendimento favorável ao
poder de investigação do Ministério Público:
a)
a atividade investigatória não é
exclusiva da polícia judiciária, pois o próprio Código de Processo
Penal prevê, em seu art. 4º, parágrafo único, que a competência da polícia
judiciária não excluirá a de autoridades administrativas a quem por lei seja
cometida a mesma função.
b)
não há de se falar em violação ao sistema acusatório, na medida em que os
elementos de informações colhidos pelo Ministério Público deverão ser
submetidos ao crivo do contraditório
e da ampla defesa perante a autoridade judiciária.
c)
teoria dos poderes implícitos.
d)
a Resolução 13 do CNMP
delimita o procedimento investigatório promovido pelo Parquet .
Nesse
sentido concluem Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens:
Parece
não restar qualquer dúvida que a Constituição de 1988 representa uma ruptura
paradigmática em nosso País.
Trata-se
de uma Constituição que se alinha na contemporânea tradição das constituições
dirigentes e compromissárias, estabelecendo em seu texto - e em sua
principiologia - os mecanismos aptos ao resgate das promessas da modernidade insculpidas
no seu núcleo político essencial, que aponta para a construção de um Estado
Social e Democrático de Direito. É desses mecanismos que o Estado - e as
Instituições encarregadas constitucionalmente da consecução desse desiderato -
não pode abrir mão, sob pena de demitir-se de sua função precípua, para
recorrer às palavras de BAPTISTA MACHADO referidas anteriormente.
Entretanto,
textos jurídicos, considerados em si-mesmos, pouco ou nada significam. Textos
descontextualizados historicamente nada (as)seguram. A experiência ensina - diz
FERRAJOLI - que nenhuma garantia
jurídica pode reger-se exclusivamente por normas; que nenhum direito
fundamental pode concretamente sobreviver se não é apoiado pela luta por sua
atuação da parte de quem é seu titular e
pela solidariedade com esta, de forças políticas e sociais; que, em suma, um sistema
jurídico, porquanto tecnicamente perfeito, não pode por si só garantir nada.
Contrariamente, escreveu VITTORIO EMANUELE ORLANDO, nenhuma pessoa de bom senso
crerá que uma simples mudança de uma ou mais leis poderia bastar para que o
cidadão inglês do século XX venha a encontrar-se, em face de seu soberano, na
mesma condição dos súditos do imperador de Uganda.
Assim,
de nada adianta todo o arcabouço jurídicoconstitucional, forjado a partir do
processo constituinte de 1986-88, apontar para um Estado Democrático de
Direito, que traz ínsito um plus normativo, superador das concepções anteriores
de Direito e de Estado (Liberal e Social), se, no conjunto das práticas dos
juristas, não se constituir um substrato político, material e cultural, apto a
concretizar essa normatividade.
Trata-se,
pois, de uma questão recorrente, representada pela discussão da crise de
paradigmas: é preciso triunfar sobre a tradição sob pena de fracassarmos por
causa dela!
É
nesse contexto que entendemos que a decisão lançada pelo Supremo Tribunal
Federal no âmbito do RHC 81.326-DF não se coaduna com o conjunto de princípios
e normas que constituem o arcabouço constitucional brasileiro. Antes disso, parece
atender a outras determinantes, mais aproximadas a razões de natureza política
(em sentido lato).
Deveras,
são conhecidos os conflitos gerados entre Polícia e Ministério Público a partir
do reconhecimento normativo de que
também este órgão teria poderes para efetuar diligências investigatórias.
Chegou-se a falar em invasão de atribuições ou mesmo usurpação de funções da
Polícia por parte do Ministério Público. Afastadas metáforas ou hipérboles que
em nada contribuem ao alcance de uma solução racional - até porque problemas
corporativos têm sede distinta, que não a judiciária, para sua resolução -, não
podemos negar o óbvio: é possível que em determinados casos tenhamos, a partir
da colegitimação de órgãos de Estado, uma duplicidade investigações.
Pois
o problema reside exatamente neste ponto: consiste em estabelecermos um espaço
teórico-discursivo dentro do qual possamos concluir se, da possibilidade de
verificar-se tal situação, deveremos ter, como solução de gênero, a ab-rogação das
prerrogativas investigatórias do ministério Público (conclusão a que chega a
decisão prolatada no RHC 81.326-DF) ou, diversamente, se eventual excesso por parte deste ou daquele órgão no
exercício de suas atribuições não estaria a melhor comportar uma análise
concreta (caso a caso) acerca de sua ocorrência, abrindo caminho, pois, a uma
solução de espécie.
A
lógica que impera sobre o sistema aponta para a segunda hipótese. Ora,
existindo mecanismos ágeis e eficazes destinados à correção de abusos muitas
vezes imputados aos agentes do Ministério Público - certamente não em maior número
que aqueles imputados à própria Polícia -, e o habeas corpus e o mandado de
segurança são os exemplos mais eloqüentes, o que não parece razoável é abortar-se ab initio a investigação criminal,
concluindo-se pela invalidação de diligências investigatórias pelo exclusivo
fato de haverem sido realizadas pelo Ministério Público, nada obstante sua inquestionável
base normativa e o interesse público despontante dessa atividade.
Considere-se,
ainda, que a investigação criminal exercida pelo Ministério Público não se
consubstancia como uma regra geral. Melhor seria dizê-la confortada no plano da
necessidade circunstancial. No mais das vezes, seu desencadeamento decorre ou da inconveniência casuística da
instauração de um procedimento amplo como o inquérito policial ou mesmo da omissão
da Polícia na investigação de determinados delitos, notadamente quando
envolvidos agentes policiais.
O
que aqui se preconiza, enfim, não é um Ministério Público-policial, a dar
ensejo à figura de um procurador/promotor investigador por excelência; quanto menos
um Estado big brother, panóptico ante os meios social e individual.
Sustenta-se, isto sim, com substrato na Constituição e na legislação vigente (e
válida), a destruição de dogmas que apenas servem para alimentar feudos
corporativos há muito inexistentes no Direito comparado.
Nesse
sentido, curioso notar-se que ao revés do que se passa no Brasil, na Europa
processa-se fenômeno nitidamente distinto. Sofrida pelo terrorismo e - em
alguns países mais que em outros - pela corrupção política, bem assim temerosa
em relação à danosidade decorrente da criminalidade econômica (muito
especialmente em face do delito de lavagem de dinheiro, a exigir tratamento
uniforme no âmbito comunitário), já se fala, naquela ordem de domínio, em
princípio da universalização da investigação, inclusive mediante a criação de organismos
supranacionais ao desempenho de tal atividade, concêntricos e mais amplos em
relação aos que já existem no âmbito interno de cada nação. Considerado o nível
de democracia atingido pelo modelo político europeu, tudo o que não se poderia
fazer seria acoimá-lo de retrógrado.
No
caso do Brasil, rigorosamente nada - nem jurídica, nem política, nem
pragmaticamente - justifica a concentração da atividade investigatória nas mãos
de um só órgão de Estado, ainda que a este se atribua, com primazia, o exercício
de tal função.
O
essencial, repetimos, é que existam mecanismos hábeis à efetivação de um
controle sobre as diligências investigatórias conduzidas pelo Ministério
Público. Em existindo, como de fato existem, tais estruturas de controle -
ressalte-se, com proeminência, o controle jurisdicional -, elevadas razões jurídicas (art. 129, I e IX, da CRFB, c/c
arts. 8°, V, da LC n.° 75/93, 26, da Lei n.° 8.625/93, e 4°, parágrafo único,
do CPP), bem como o interesse público inerente à atividade investigatória,
estão a justificar a sua realização pelo Ministério Público.
Numa
palavra: é preciso ter claro que a discussão acerca do alcance da dicção do
comando constitucional que aponta para a legitimidade de o Ministério Público
realizar diligências investigatórias em matéria criminal não prescinde de uma análise
do conjunto principiológico da Constituição, compreendida a partir da revolução
copernicana que atravessou o Direito Constitucional no segundo pós-guerra, e que
deixou marcas indeléveis nas democracias contemporâneas. Todo Estado de Direito
passa a ser compreendido como Estado Constitucional, isto porque este é mais do
que aquele. A Constituição passa a ser o estatuto jurídico do político. Mais do
que isto, a Constituição constitui-se
em remédio contra maiorias eventuais. Nesse contexto, torna-se
necessário ter presente as alterações ocorridas no perfil do Estado e - naquilo
que mais nos interessa neste debate - do Direito Penal, questões que se
refletem no Poder Judiciário e especialmente no Ministério Público.
A
matéria merece, pois, um banho de imersão constitucional. E isto implica
superar paradigmas. Não é mais possível sustentar uma tradição assentada nos
modelos investigativos que remontam à década de 40 do século passado.
Naquele
modelo, estava-se diante de um Estado autoritário, em que o Poder Judiciário e
o Ministério Público longe estavam de qualquer autonomia e independência frente aos demais poderes. Afinal,
ao Estado interessava o combate aos delitos de índole interindividual, com
nítida preponderância aos crimes contra o patrimônio privado. Esse quadro -
agravado por mais de duas décadas de ditadura militar - somente recebe novos contornos
em 1988, quando o Brasil ingressa no universo dos países que adotaram o modelo
de Constituição dirigente e compromissária, plasmando, no seu texto,
instituições e mecanismos aptos a implementar direitos historicamente sonegados
à Sociedade.
Daí
o alerta de CANOTILHO, que chama a atenção para o fato de que a iluminação de
muitos problemas jurídicoconstitucionais carece (ainda) de um background
explicativo e justificativo que só pode ser fornecido por uma reflexão teórica sobre o próprio Direito
Constitucional. Não é possível, por exemplo, discutir o conceito de
Constituição sem se falar em teorias da Constituição. Seria metodologicamente empobrecedora
uma análise dos direitos fundamentais sem uma exposição das teorias dos
direitos fundamentais. No mesmo sentido, aduz o mestre coimbrano, abordar o
princípio democrático sem o suporte teórico das teorias da democracia.
Sem
as teorias de NEWTON não se teria chegado à Lua - assim o diz e demonstra
SAGAN; sem o húmus teórico, o Direito
Constitucional dificilmente passará de vegetação rasteira, ao sabor dos ventos,
dos muros e da eficácia.
Do
mesmo modo, não é possível analisar o texto constitucional - naquilo que diz
respeito à atuação do Ministério Público no combate à criminalidade - sem
recorrer às teorias do Estado e do Direito, ínsitas a qualquer teoria da Constituição.
Consequentemente, toda e qualquer interpretação acerca da função investigatória
do Ministério Público deve ser feita com os olhos voltados àquilo que o
constitucionalismo contemporâneo nos legou: um Direito e um Estado com novos perfis.
Ou
seja, os modelos de Estado e de Direito da década de 40, que forjaram a
tradição de legitimidade investigatória policial, são absolutamente
discrepantes dos atuais modelos jurídico-estatais. O processo constituinte de
1986-88, que complementa a transição do regime autoritário ao regime democrático,
passa a ser um marco interruptivo nesse modelo de investigação policial e de
direito processual penal.
Por
isto, a problemática relacionada à função investigativa do Ministério Público
assunte um viés nitidamente constitucional. Fazer o contrário é reduzir o
problema ao plano (inferior) da infraconstitucionalidade.
É como se, em vez de interpretarmos as leis em conformidade com a Constituição,
passássemos a interpretar a Constituição em conformidade com as leis e, quiçá,
com leis anteriores a Constituição, o que implicaria fazer uma leitura
inconstitucional da própria Constituição! (Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens,
Crime e Constituição: a legitimidade da função investigatória do Ministério
Público, Forense, Rio de Janeiro, 2003, p. 106-116).
O
próprio Supremo Tribunal Federal não logrou, ainda, firmar orientação
dominante.
Ao
analisar a controvérsia no âmbito do
RE 205.473/AL, a Segunda Turma, em julgamento realizado em 15 de dezembro de
1998, reputou não caber ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, investigações
tendentes à apuração de infrações penais, mas somente requisitá-las à
autoridade policial, competente para tal, nos termos do art. 144, §§ 1º e 4º.
No
julgamento do RHC 81.326/DF, de relatoria do Min. Nelson Jobim, a Segunda Turma
voltou a reafirmar que a Constituição Federal dotou o Ministério Público do
poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito
policial (CF, art. 129, VIII). A
norma constitucional não contemplou a possibilidade de o Parquet realizar e presidir
inquérito policial. Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir
diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência
nesse sentido à autoridade policial. Precedentes.
O
recorrente é delegado de polícia e, portanto, autoridade administrativa. Seus
atos estão sujeitos aos órgãos hierárquicos próprios da Corporação, Chefia de
Polícia, Corregedoria . (RHC 81.326/DF, Rel. Min. Nelson Jobim, Segunda Turma,
DJ 1.8.2003).
Em
decisões mais recentes, todavia, é possível encontrar posicionamento diverso,
permitindo ao Ministério Público promover, por autoridade própria,
investigações de natureza penal.
Em
processo de relatoria da Min. Ellen Gracie (HC 91.661/PE), a Segunda Turma, à
unanimidade, asseverou que o art. 129, inciso I, da Constituição Federal,
atribui ao Parquet a privatividade na promoção da ação penal pública. Do seu
turno, o Código de Processo Penal estabelece que o inquérito policial é dispensável, já que o
Ministério Público pode embasar seu pedido em peças de informação que
concretizem justa causa para a
denúncia.
Ora,
é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos poderes implícitos, segundo
o qual, quando a Constituição Federal
concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim promoção da ação penal
pública foi outorgada ao Parquet em foro de privatividade, não se concebe como
não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que
peças de informação embasem a denúncia.
Posteriormente,
no julgamento do HC 89.837/DF, a Segunda Turma voltou a reafirmar essa
orientação. Por oportuno, transcrevo trecho do voto proferido pelo relator,
Min. Celso de Mello:
O
poder de investigar compõe, em sede penal, o complexo de funções institucionais
do Ministério Público, que dispõe, na condição de dominus litis e, também, como
expressão de sua competência para exercer o controle externo da atividade policial,
da atribuição de fazer instaurar, ainda que em caráter subsidiário, mas por
autoridade própria e sob sua direção, procedimentos de investigação penal
destinados a viabilizar a obtenção de dados informativos, de subsídios
probatórios e de elementos de convicção que lhe permitam formar a opinio
delicti, em ordem a propiciar eventual ajuizamento da ação penal de iniciativa
pública.
Postas
essas premissas, tenho para mim que, nesta quadra do direito constitucional, é
legítimo o poder de investigação do Ministério Público, obedecidos os limites e os controles
ínsitos a essa atuação.
Não
há controvérsia na doutrina ou na jurisprudência no sentido de que o poder de
investigação é inerente ao exercício das funções da polícia judiciária Civil e
Federal , nos termos do art. 144, § 1º, IV, e § 4º, da CF. E, como destaca o
Min. Celso de Mello, não obstante a presidência do inquérito policial incumba à
autoridade policial (e não ao Ministério Público), nada impede que o órgão da
acusação penal possa solicitar à Polícia Judiciária novos esclarecimentos, novos depoimentos ou novas diligências,
sem prejuízo de poder acompanhar, ele próprio, os atos de investigação
realizados pelos organismos policiais (HC 89.837 - DF).
A celeuma que se cria em torno da
exclusividade do poder de investigação da polícia judiciária, sem
adentrar o campo da argumentação não jurídica, perpassa a dispensabilidade do
inquérito policial para o ajuizamento da ação penal e o poder de produzir
provas conferido às partes.
A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente acentuado ser dispensável, ao oferecimento da
denúncia, a prévia instauração de inquérito policial, desde que
evidente a materialidade do fato delituoso e presentes indícios de autoria (HC
63.213/SP, rel. Min. Néri da Silveira, Primeira Turma, DJ 26.2.1988; HC
63.213/SC, rel. Min. Néri da Silveira, Segunda Turma, DJ 3.3.2000).
Dessa
forma, considerando o poder-dever conferido ao Ministério Público na defesa da
ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis (art. 127, da CF), afigura-me indissociável às suas funções
relativa autonomia para colheita de elementos de prova como, de fato, lhe
confere a legislação infraconstitucional.
É
ínsito ao sistema dialético de processo, concebido para o estado democrático de
direito, a faculdade de a parte colher, por si própria, elementos de prova
hábeis para defesa de seus interesses. E, nessa quadra, não poderia ser
diferente com relação ao MP que tem, friso, o poder-dever da defesa da ordem
jurídica.
E
não se confundem eventuais diligências realizadas pelo Ministério Público em
procedimento por ele instaurado com o inquérito policial. E essa atividade
preparatória, consentânea com a responsabilidade do poder acusatório, não
interfere na relação de equilíbrio entre acusação e defesa, na medida em que
não está imune ao controle judicial simultâneo ou posterior.
Importante
mais uma vez advertir que a atividade investigatória não é exclusiva da polícia
judiciária. O próprio constituinte originário, ao delimitar o poder
investigatório das comissões parlamentares de inquérito (CF, art. 58, § 3º),
pareceu encampar esse entendimento.
Raciocínio
diverso – exclusividade das investigações efetuadas por organismos policiais –
levaria à conclusão absurda de que também outras instituições, e não somente o
Ministério Público, estariam impossibilitadas de exercer atos investigatórios,
o que é de todo inconcebível.
Por
outro lado, o próprio Código de Processo Penal, em seu art. 4º, parágrafo
único, dispõe que a apuração das infrações penais e sua autoria não excluirá a
competência de autoridades administrativas a quem por lei seja cometida a mesma
função.
À
guisa de exemplo, cito, entre outras, a atuação
das Comissões Parlamentares de Inquérito (CF, art. 58, § 3º), as
investigações realizadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras
COAF (Lei 9.613/98), pela Receita Federal, pelo Bacen, pela CVM, pelo TCU, pelo
INSS e, por que não lembrar, mutatis mutandis, as sindicâncias e os processos
administrativos no âmbito dos poderes do Estado.
Na
linha do entendimento que venho expor, convém destacar excerto do voto
proferido pelo Min. Celso de Mello no HC 89.837/DF:
Mostra-se
importante assinalar, nessa linha de pensamento, que a instituição policial,
qualquer que seja a dimensão política em que se ache estruturada (quer no
âmbito da União, quer no dos Estados-membros), não detém, em nosso sistema
normativo, o monopólio da competência investigatória em matéria penal, pois tal
como observa BRUNO CALABRICH (Investigação Criminal pelo Ministério Público:
fundamentos e limites constitucionais, p. 103/104, item n. 3.4, 2007, RT),
apoiando-se, para tanto, em registro feito por Luciano Feldens e Lenio Streck o
ordenamento constitucional não impede que outros órgãos estatais, diversos da
Polícia, promovam, por direito próprio, em suas respectivas áreas de
atribuição, atos de investigação destinados a viabilizar a apuração e a
colheita de provas concernentes a determinado fato que atinja valores jurídicos
postos sob a imediata tutela de referidos organismos públicos, independentemente
de estes posicionarem-se nos domínios institucionais do Poder Executivo ou do
Poder Legislativo:
(...)
No âmbito do Poder Executivo, são citadas as investigações realizadas pela
Receita Federal (Delegacias da Receita e
seus ESPEI), pelo Bacen (Decif e COAF) e pela Corregedoria-Geral da União (hoje
denominada Controladoria-Geral da União). No Poder Legislativo, destacam-se as apurações
promovidas pelas CPI (art. 58, § 3.º, da CF/88), além do inquérito a cargo da
Corregedoria da Câmara dos Deputados ou do diretor do serviço de segurança (no
caso da prática de uma infração penal nos edifícios da Câmara dos Deputados -
art. 269 do Regimento Interno da Câmara). (...).
Podem
ser acrescentados diversos outros exemplos não citados na referida obra: as
investigações realizadas pelos órgãos estaduais ou municipais correlatos aos
federais (Receitas, Corregedorias, Comissões Parlamentares), pelo INSS (crimes
contra a previdência social), pelas Delegacias do Trabalho (crimes contra a
organização do trabalho,
especialmente o trabalho escravo), pelo Ibama e pelos órgãos estaduais de proteção
do meio ambiente (infrações penais ambientais).
Todo
esse rol (...) não é exaustivo, nada impedindo, ademais, que outras leis
prevejam a atribuição investigatória de outros órgãos, desde que sua natureza e
função se harmonizem com a estrutura constitucional em que se inserem. (HC
89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 19.11.2009).
Porém,
convém advertir que o poder de
investigar do Ministério Público não pode ser exercido de forma ampla e
irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir,
inevitavelmente, direitos fundamentais. A atividade de investigação, seja ela
exercida pela Polícia ou pelo Ministério Público, merece, por sua própria
natureza, vigilância e controle.
Daí,
o entendimento de que as
investigações realizadas pelo Ministério Público devam ser, necessariamente,
subsidiárias, ocorrendo, apenas, quando não for possível, ou
recomendável, se efetivem pela própria polícia.
Note-se
que caberá, sempre, ao Ministério Público, o controle externo da atividade
policial, o que implica a natural participação do Parquet no controle das
investigações realizadas.
Nessa
linha de argumentação, percebo que só se justifica constitucionalmente o
exercício da função investigativa, por quem não possui essa função
constitucional precípua, a partir do reconhecimento do aspecto subsidiário
dessa atividade.
O
mesmo diga-se da amplitude dessa atuação. Se à polícia não é dado realizar
investigações sem que haja pertinência do sujeito investigador com a base
territorial e com a natureza do fato investigado, também não é razoável admitir
que qualquer órgão do Ministério Público possa, a seu talante, instaurar
investigação contra quem quer que seja.
Uma
central de investigações em cada Ministério Público, não apenas para controlar
externamente a atividade policial, como também para realizar as investigações
subsidiárias que se fizerem necessárias, é um consectário dessa diferenciação
funcional que emana da Constituição Federal.
Por
outro lado, veja-se que o pleno conhecimento dos atos de investigação, como bem
afirmado na Súmula Vinculante 14,
exige não apenas que a essas investigações se aplique o princípio do amplo conhecimento
de provas e investigações, como também se formalize o ato investigativo. Para
tanto, é obrigatório que se emita um ato formal de instauração de procedimento
administrativo penal no Ministério Público.
Não
é razoável que se dê menos formalismo à investigação do Ministério Público do
que aquele exigido para as investigações policiais.
Menos
razoável ainda é que se mitigue o princípio da ampla defesa quando for o caso
de investigação conduzida pelo titular da ação penal.
Isso
deve ser assim porque todas as regras que estão estabelecidas para o inquérito
policial devem ser observadas para os processos administrativos que impliquem,
no futuro, investigações de natureza penal ou ação penal propriamente dita.
Tal
como ressaltado pelo prof. Luís Roberto Barroso, em parecer encaminhado pela
Secretaria de Direitos Humanos nos autos do INQ. 1968, fl. 21, não é
desimportante lembrar que a Polícia sujeita-se ao controle do Ministério
Público. Mas se o Ministério Público desempenhar, de maneira ampla e difusa, o
papel da Polícia, quem irá fiscalizá-lo?
Compartilhando
dessa mesma preocupação, o Min. Celso de Mello teve a oportunidade de aduzir as
seguintes ponderações a respeito da questão (HC 89.837/DF):
Também
entendo , Senhores Ministros, na linha do parecer da douta Procuradoria Geral
da República, que se revela constitucionalmente lícito, ao Ministério Público, promover,
por autoridade própria, atos de investigação penal, respeitadas não obstante a
unilateralidade desse procedimento investigatório as limitações que incidem
sobre o Estado em tema de persecução penal.
Isso
significa que a unilateralidade das
investigações preparatórias da ação penal não autoriza o Ministério
Público tanto quanto a própria Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias
jurídicas que assistem ao suspeito e ao indiciado, que não mais podem ser
considerados meros objetos de investigação.
O
indiciado é sujeito de direitos e dispõe, nessa condição, de garantias legais e
constitucionais, cujo desrespeito, pelas autoridades do Estado (trate-se de
agentes policiais ou de representantes do Ministério Público), além de eventualmente
induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, revela-se apto a
gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da
investigação penal.
Note-se,
portanto, analisando-se a questão sob tal aspecto, que o procedimento
investigatório instaurado pelo Ministério Público não interfere, nem afeta o
exercício, pela autoridade policial, de sua irrecusável condição de presidente do
inquérito policial, de responsável pela condução das investigações penais na
fase pré-processual da persecutio criminis e do desempenho dos encargos típicos
inerentes à função de Polícia Judiciária. (HC 89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello,
Segunda Turma, DJe 19.11.2009).
É
certo, também, que a instalação de eventual concorrência entre os órgãos
envolvidos pode comprometer a efetividade da apuração criminal, com sérios
prejuízos para todos. A informalidade de um sistema investigatório, a criação
de procedimentos informais podem acarretar, por seu turno, graves danos à
proteção dos direitos individuais.
Transcrevo,
no ponto, as severas críticas de Pacelli:
O
que deveria ser uma cooperação
para o mais adequado exercício de funções públicas, como se esperaria dos
poderes constituídos, tornou-se um imenso imbróglio,
no qual os argumentos nem sempre conseguem escamotear o fato de tratar-se de pendengas
de interesses meramente institucionais/corporativos. (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli
de & Fischer, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua
Jurisprudência. 3ª ed., pg. 11. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011).
As
previsões constitucionais que disciplinam a persecução penal não admitem uma
atuação estatal arbitrária. Por isso, a necessidade de regras garantidoras da
participação do atingido, assim como aquelas que definem critérios para a
investigação pelo Ministério Público.
Nesse
sentido, colho as ponderações de Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens que
assentam que o essencial é que existam mecanismos hábeis à efetivação de um
controle sobre as diligências investigatórias conduzidas pelo Ministério
Público. Em existindo, como de fato existem, tais estruturas de controle
ressalte-se, com proeminência, o controle jurisdicional , elevadas razões jurídicas
(art. 129, I e IX, da CRFB, c/c arts. 8°, V, da LC n.° 75/93, 26, da Lei n.°
8.625/93, e 4°, parágrafo único, do CPP), bem como o interesse público inerente
à atividade investigatória, estão a justificar a sua realização pelo Ministério
Público (Lenio Luiz Streck e Luciano Feldens, Crime e Constituição: a
legitimidade da função investigatória do Ministério Público, Forense, Rio de
Janeiro, 2003, p. 106-116).
Lembro,
nesse ponto, que o inquérito policial é concebido, também, como instrumento de
garantia do acusado. Não obstante a ausência do contraditório, não deixa o
inquérito policial de representar um procedimento legal de mediação entre o interesse
do acusado e o direito de punir do Estado. Daí, a existência de garantias
mínimas ao acusado, tais como a existência de prazos, a supervisão judicial, a
ciência das partes e a possibilidade de acompanhamento por meio de advogado.
Disso
tudo resulta que o tema comporta e reclama disciplina legal, para que a ação do
Estado não resulte prejudicada e não prejudique a defesa dos direitos
fundamentais. É que esse campo tem-se prestado a abusos. Tudo isso é resultado de um contexto
de falta de lei a regulamentar a
atuação do Ministério Público.
Entendo
que, em alguns casos, eventuais diligências poderiam ser admitidas. Se o
Ministério Público recebe informações da Receita Federal ou do Banco Central,
estaria impedido de requerer diligências complementares? Não me parece que a
resposta seja, necessariamente, negativa. A ausência de uma disciplina
normativa não invalida toda e qualquer atuação do Ministério Público,
especialmente se ligada a elementos probatórios já existentes.
Não
obstante, no modelo atual, não entendo possível aceitar que o Ministério
Público substitua a atividade policial incondicionalmente. Pela percuciente e
judiciosa explanação, adiro ao já asseverado pelo Min. Celso de Mello no HC
89.837-DF:
Reconheço
, pois, que se reveste de legitimidade constitucional o poder de o Ministério
Público, por direito próprio, promover investigações penais, sempre sob a égide do princípio da
subsidiariedade, destinadas a permitir , aos membros do Parquet, em
hipóteses específicas (quando se registrarem, por exemplo, situações de lesão
ao patrimônio público ou, então, como na espécie, excessos cometidos pelos próprios
agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências
arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar
uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar
o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da
qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas
infrações penais), a possibilidade de coligir dados informativos para o ulterior
desempenho, por Promotores e Procuradores, de sua atividade persecutória em
juízo penal . (HC 89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe
19.11.2009).
Por
exemplo, constata-se situação excepcionalíssima que, a meu ver, justifica a
atuação do Ministério Público na coleta das provas que fundamentam a ação
penal, tendo em vista a investigação encetada sobre suposto crime cometido por
servidores públicos, inclusive policiais militares.
Ressalto
que tive a oportunidade de sufragar entendimento no sentido do que venho expor.
Refiro-me ao HC 93.930/RJ (DJe 3.2.2011), o qual tratava de investigação
encetada sobre suposto crime de tortura cometido por policiais militares contra
adolescentes apreendidos na posse de substância entorpecente. Dada a
excepcionalidade do caso, reputei lícito o procedimento administrativo
investigatório adotado pelo Parquet.
Não
é demais observar que essa atividade supletiva do Ministério Público, ante a
possibilidade de favorecimento aos investigados, vem sendo aceita em recentes
pronunciamentos desta Corte, destacando-se os seguintes precedentes:
HABEAS
CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. EXISTÊNCIA DE SUPORTE
PROBATÓRIO MÍNIMO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. POSSIBLIDADE
DE INVESTIGAÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. DELITOS PRATICADOS POR POLICIAIS.
ORDEM DENEGADA.
1. A presente impetração visa o
trancamento de ação penal movida em face dos pacientes, sob a alegação de falta
de justa causa e de ilicitude da denúncia por estar amparada em depoimentos colhidos
pelo ministério público.
2. A denúncia foi lastreada em documentos
(termos circunstanciados) e depoimentos de diversas testemunhas, que garantiram
suporte probatório mínimo para a deflagração da ação penal em face dos
pacientes.
3. A alegação de que os pacientes
apenas cumpriram ordem de superior hierárquico ultrapassa os estreitos limites
do habeas corpus, eis que envolve, necessariamente, reexame do conjunto fático-probatório.
4. Esta Corte tem orientação
pacífica no sentido da incompatibilidade do habeas corpus quando houver necessidade
de apurado reexame de fatos e provas (HC n. 89.877/ES, rel. Min. Eros Grau, DJ
15.12.2006), não podendo o remédio constitucional do habeas corpus servir como
espécie de recurso que devolva completamente toda a matéria decidida pelas
instâncias ordinárias ao Supremo Tribunal Federal.
5. É perfeitamente possível que o
órgão do Ministério Público promova a
colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da
autoria e da materialidade de determinado delito. Tal conclusão não significa
retirar da Polícia Judiciária as atribuições previstas constitucionalmente, mas
apenas harmonizar as normas constitucionais (arts. 129 e 144) de modo a
compatibilizá-las para permitir não apenas a correta e regular apuração dos
fatos supostamente delituosos, mas também a formação da opinio delicti.
6. O art. 129, inciso I, da
Constituição Federal, atribui ao Parquet a privatividade na promoção da ação
penal pública. Do seu turno, o Código de Processo Penal estabelece que o
inquérito policial é dispensável, já que o Ministério Público pode embasar seu
pedido em peças de informação que concretizem justa causa para a denúncia.
7. Ora, é princípio basilar da
hermenêutica constitucional o dos poderes implícitos, segundo o qual, quando a
Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim - promoção
da ação penal pública - foi outorgada ao Parquet em foro de privatividade, não
se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o
CPP autoriza que peças de informação embasem a denúncia.
8. Cabe ressaltar, que, no presente
caso, os delitos descritos na denúncia teriam sido praticados por policiais, o
que, também, justifica a colheita dos depoimentos das vítimas pelo Ministério
Público.
9. Ante o exposto, denego a ordem
de habeas corpus . - (HC n. 91.661/PE, 2ª Turma, rel. Min. Ellen Gracie,
julgado em 10 de março de 2009).
HABEAS
CORPUS CRIME DE TORTURA ATRIBUÍDO A POLICIAL CIVIL POSSIBILIDADE DE O
MINISTÉRIO PÚBLICO, FUNDADO EM INVESTIGAÇÃO POR ELE PRÓPRIO PROMOVIDA, FORMULAR
DENÚNCIA CONTRA REFERIDO AGENTE POLICIAL VALIDADE JURÍDICA DESSA ATIVIDADE
INVESTIGATÓRIA CONDENAÇÃO PENAL IMPOSTA AO POLICIAL TORTURADOR - LEGITIMIDADE
JURÍDICA DO PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO MONOPÓLIO CONSTITUCIONAL
DA TITULARIDADE DA AÇÃO PENAL PÚBLICA
PELO PARQUET TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS CASO McCULLOCH v. MARYLAND (1819)
MAGISTÉRIO DA DOUTRINA (RUI BARBOSA, JOHN MARSHALL, JOÃO BARBALHO, MARCELLO CAETANO,
CASTRO NUNES, OSWALDO TRIGUEIRO, v. g.) OUTORGA, AO MINISTÉRIO PÚBLICO, PELA
PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, DO PODER DE CONTROLE EXTERNO SOBRE A
ATIVIDADE POLICIAL LIMITAÇÕES DE ORDEM JURÍDICA AO PODER INVESTIGATÓRIO DO
MINISTÉRIO PÚBLICO HABEAS CORPUS INDEFERIDO. NAS HIPÓTESES DE AÇÃO PENAL
PÚBLICA, O INQUÉRITO POLICIAL, QUE CONSTITUI UM DOS DIVERSOS INSTRUMENTOS
ESTATAIS DE INVESTIGAÇÃO PENAL, TEM POR DESTINATÁRIO PRECÍPUO O MINISTÉRIO PÚBLICO
.
- O inquérito policial
qualifica-se como procedimento administrativo, de caráter pré -processual,
ordinariamente
vocacionado a subsidiar, nos
casos de infrações perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública, a
atuação persecutória do Ministério Público, que é o verdadeiro destinatário dos
elementos que compõem a informatio delicti. Precedentes.
- A investigação penal, quando
realizada por organismos policiais, será sempre dirigida por autoridade
policial, a quem igualmente competirá exercer, com exclusividade, a presidência
do respectivo inquérito.
- A outorga constitucional de
funções de polícia judiciária à instituição policial não impede nem exclui a
possibilidade de o Ministério Público, que é o dominus litis, determinar a abertura
de inquéritos policiais, requisitar esclarecimentos e diligências
investigatórias, estar presente e acompanhar, junto a órgãos e agentes
policiais, quaisquer atos de investigação penal, mesmo aqueles sob regime de
sigilo, sem prejuízo de outras medidas que lhe pareçam indispensáveis à
formação da sua opinio delicti, sendo-lhe vedado, no entanto, assumir a presidência do inquérito policial, que traduz
atribuição privativa da autoridade policial. Precedentes.
A ACUSAÇÃO PENAL, PARA SER
FORMULADA, NÃO DEPENDE, NECESSARIAMENTE, DE PRÉVIA INSTAURAÇÃO DE INQUÉRITO
POLICIAL.
- Ainda que inexista qualquer
investigação penal promovida pela Polícia Judiciária, o Ministério Público,
mesmo assim, pode fazer instaurar, validamente, a pertinente persecutio
criminis in judicio, desde que disponha, para tanto, de elementos mínimos de
informação, fundados em base empírica idônea, que o habilitem a deduzir,
perante juízes e Tribunais, a acusação penal. Doutrina. Precedentes.
A QUESTÃO DA CLÁUSULA
CONSTITUCIONAL DE EXCLUSIVIDADE E A ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA.
- A cláusula de exclusividade
inscrita no art. 144, § 1º, inciso IV, da Constituição da República - que não
inibe a atividade de investigação criminal do Ministério Público - tem por
única finalidade conferir à Polícia Federal, dentre os diversos organismos
policiais que compõem o aparato repressivo da União Federal (polícia federal,
polícia rodoviária federal e polícia ferroviária federal), primazia
investigatória na apuração dos crimes previstos no próprio texto da Lei Fundamental
ou , ainda, em tratados ou convenções internacionais.
- Incumbe, à Polícia Civil dos
Estados-membros e do Distrito Federal, ressalvada a competência da União
Federal e excetuada a apuração dos crimes militares, a função de proceder à
investigação dos ilícitos penais (crimes e contravenções), sem prejuízo do
poder investigatório de que dispõe, como atividade subsidiária, o Ministério
Público.
- Função de polícia judiciária e
função de investigação penal: uma distinção conceitual relevante, que também
justifica o reconhecimento, ao
Ministério Público, do poder investigatório em matéria penal. Doutrina.
É PLENA A LEGITIMIDADE
CONSTITUCIONAL DO PODER DE INVESTIGAR DO MINISTÉRIO PÚBLICO, POIS OS ORGANISMOS
POLICIAIS (EMBORA DETENTORES DA FUNÇÃO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA) NÃO TÊM, NO
SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, O MONOPÓLIO DA COMPETÊNCIA PENAL INVESTIGATÓRIA.
- O poder de investigar compõe,
em sede penal, o complexo de funções institucionais do Ministério Público, que dispõe,
na condição de dominus litis e, também, como expressão de sua competência para
exercer o controle externo da atividade policial, da atribuição de fazer
instaurar, ainda que em caráter subsidiário, mas por autoridade própria e sob sua
direção, procedimentos de investigação penal destinados a viabilizar a obtenção
de dados informativos, de subsídios probatórios e de elementos de convicção que
lhe permitam formar a opinio delicti, em ordem a propiciar eventual ajuizamento
da ação penal de iniciativa pública. Doutrina. Precedentes.
CONTROLE JURISDICIONAL DA
ATIVIDADE INVESTIGATÓRIA DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO: OPONIBILIDADE, A
ESTES, DO SISTEMA DE DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS, QUANDO EXERCIDO, PELO
PARQUET, O PODER DE INVESTIGAÇÃO PENAL.
- O Ministério Público, sem
prejuízo da fiscalização intraorgânica e daquela desempenhada pelo Conselho Nacional do Ministério Público,
está permanentemente sujeito ao controle
jurisdicional dos atos que pratique no âmbito das investigações penais
que promova ex propria auctoritate, não podendo, dentre outras limitações de
ordem jurídica, desrespeitar o direito do investigado ao silêncio (nemo tenetur
se detegere), nem lhe ordenar a condução coercitiva, nem constrangê-lo a
produzir prova contra si próprio, nem lhe recusar o conhecimento das razões
motivadoras do procedimento investigatório, nem submetê-lo a medidas sujeitas à
reserva constitucional de jurisdição, nem impedi-lo de fazer-se acompanhar de
Advogado, nem impor, a este, indevidas restrições ao regular desempenho de suas
prerrogativas profissionais (Lei nº 8.906/94, art. 7º, v. g.)
- O procedimento investigatório
instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações
ou depoimentos, laudos periciais e demais subsídios probatórios coligidos no
curso da investigação, não podendo, o Parquet , sonegar, selecionar ou deixar
de juntar, aos autos, quaisquer desses elementos de informação, cujo conteúdo,
por referir-se ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível tanto à
pessoa sob investigação quanto ao seu Advogado.
- O regime de sigilo, sempre excepcional, eventualmente prevalecente
no contexto de investigação penal promovida pelo Ministério Público, não se revelará oponível ao investigado
e ao Advogado por este constituído, que terão direito de acesso
considerado o princípio da comunhão das provas
a todos os elementos de informação que já tenham sido formalmente incorporados
aos autos do respectivo procedimento investigatório. (HC 89.837/DF, Rel. Min.
Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 19.11.2009).
Em
síntese, reafirmo que é legítimo o
exercício do poder de investigar por parte do Ministério Público,
porém, essa atuação não pode ser exercida de forma ampla e irrestrita, sem
qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais.
A atividade de investigação, seja ela exercida pela Polícia ou pelo Ministério
Público, merece, por sua própria natureza, vigilância e controle.
A
atuação do Parquet deve ser, necessariamente, subsidiária, ocorrendo, apenas,
quando não for possível, ou recomendável, se efetivem pela própria polícia, em
hipóteses específicas, quando, por exemplo, se verificarem situações de lesão
ao patrimônio público, de excessos cometidos pelos próprios agentes e
organismos policiais (vg. tortura, abuso de poder, violências arbitrárias,
concussão, corrupção), de intencional omissão da Polícia na apuração de
determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria
corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da
condição do suspeito.
Deve-se,
ainda, observar: a) pertinência do sujeito investigado com a base territorial e
com a natureza do fato investigado; b) formalizar o ato investigativo,
delimitando seu objeto e razões que o fundamentem; c) comunicação imediata e
formal ao Procurador-Chefe ou Procurador-Geral; d) autuação, numeração e
controle de distribuição; e) publicidade de todos os atos, salvo sigilo
decretado de forma fundamentada; f) juntada e formalização de todos os atos e
fatos processuais, em ordem cronológica, principalmente diligências, provas
coligidas, oitivas; g) assegurar o pleno conhecimento dos atos de investigação
à parte e ao seu advogado, como bem afirmado na Súmula Vinculante 14; h) observar os princípios e regras que
orientam o inquérito e os procedimentos administrativos sancionatórios; i)
assegurar a ampla defesa e o contraditório, este ainda que de forma diferida,
ou seja, respeitadas as hipóteses de diligências em curso e com potencial
prejuízo acaso antecipado o conhecimento; j) prazo para conclusão e controle
judicial no arquivamento.
Com
essas considerações, VOTO no sentido de acompanhar a divergência inaugurada
pelo Ministro Sepúlveda Pertence e, com feito, reconhecer a legitimidade do Ministério Público em
investigar o delito.
-----------------------------------------------------------
STF suspende julgamento sobre
poder de investigação do MP.
Lewandowski pede vista, e
julgamento será retomado só em fevereiro. Sete ministros já reconheceram a
competência do Ministério Público para investigar.
Fux entende que o poder
investigatório do MP é “perfeitamente compatível” com a Constituição.
O Supremo Tribunal Federal (STF)
interrompeu ontem (quarta, 19) o exame sobre a legitimidade do papel do
Ministério Público (MP) em realizar investigações criminais, tema de duas ações
sob análise no plenário da corte. O julgamento foi suspendo devido ao pedido de
vista (isto é, de mais tempo para análise) feito pelo ministro Ricardo
Lewandowski. Até agora sete ministros votaram pelo poder do MP de investigar,
com apenas um voto contrário, do ministro Marco Aurélio de Mello.
Antes do pedido de vista, o
ministro Luix Fux votou a favor do poder de investigação do MP, mas com
diretrizes e restrições estabelecidas. Para Fux, não há explicação razoável
para impedir que o MP conduza procedimentos investigatórios, especialmente na
apuração de crimes e demais irregularidades praticadas por policiais.
Para Fux, o MP pode continuar
atuando em investigações, mas em caráter subsidiário e sem aspirações de
substituição das prerrogativas das polícias. “Considero perfeitamente
compatível com a Carta a possibilidade de investigação direta, pelo Ministério
Público. Nossa República é pautada por um ambiente de cooperação que deve
existir entre as mais diversas instituições estatais”, disse o magistrado, para
quem o Brasil tem pecado na realização de investigações sobre ilícitos
tributários, ambientais e contra a administração pública.
Legislação
A decisão do Supremo pode
inviabilizar a Proposta de Emenda à Constituição 37/2011, apresentada em junho
do ano passado pelo deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA). À espera de parecer em
comissão especial da Câmara, a proposição restringe as investigações criminais
às polícias federal e civis dos estados e do Distrito Federal, vedando tal
prerrogativa ao MP.
“A falta de regras claras
definindo a atuação dos órgãos de segurança pública tem causado grandes
problemas ao processo jurídico no Brasil. Temos observado procedimentos
informais de investigação conduzidos em instrumentos, sem forma, sem controle e
sem prazo, condições absolutamente contrárias ao estado de direito vigente”,
diz trecho da justificação da PEC 37/2011.
As ações sobre o tema em curso no
STF são um habeas corpus (HC) e um recurso extraordinário. O HC foi ajuizado
pelo empresário Sérgio Gomes da Silva, o “Sombra”, acusado de ser o mandante do
assassinato, em 2002, do então prefeito de Santo André, Celso Daniel. Já o
recurso foi apresentado pelo ex-prefeito de Ipanema (MG) Jairo de Souza Coelho,
condenado por crime de responsabilidade referente a descumprimento do pagamento
de precatórios determinado pela Justiça. Ele alega que o Tribunal de Justiça de
Minas Gerais acatou a denúncia unicamente com base em investigação do MP, sem
participação da polícia.
O julgamento será retomado apenas
em fevereiro, quando terminará o recesso judiciário no Supremo.
(Com informações da agência de
notícias do STF)
por Fábio Góis - 20/12/2012
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/stf-suspende-julgamento-sobre-poder-de-investigacao-do-mp/?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+congresso+%28Congresso+em+Foco%29
---------------------------------------
* O filme "ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA" (*autoria de Fritz Lang - com o ator principal Michael Douglas) retrata a história de um Promotor de Justiça que também investigava e manipulava as provas na origem dos fatos, plantava provas para alcançar seus objetivos que eram as condenações dadas como certas ao final de cada julgamento da Corte.
Este filme não pode ser classificado como ficção, pois é realidade pura do dia a dia que vemos ou sabemos que ocorre nas muitas Comarcas, principalmente os advogados militantes, que se deparam com uma, cada vez vez maior, lista de Promotores de Acusação suplantando a lista de Promotores de Justiça.
---------------------------------------